28 de setembro de 2010

Acorrentados




ACORRENTADOS

Paulo Mendes Campos

Quem coleciona selos para o filho do amigo; 
Quem acorda de madrugada e estremece no desgosto de si mesmo ao lembrar que há muitos anos feriu a quem amava; 
Quem chora no cinema ao ver o reencontro de pai e filho; 
Quem segura sem temor uma lagartixa e lhe faz com os dedos uma carícia; 
Quem se detém no caminho para ver melhor a flor silvestre; 
Quem se ri das próprias rugas; 
Quem decide aplicar-se ao estudo de uma língua morta depois de um fracasso sentimental; 
Quem procura na cidade os traços da cidade que passou; 
Quem se deixa tocar pelo símbolo da porta fechada; 
Quem costura roupa para os lázaros; 
Quem envia bonecas às filhas dos lázaros; 
Quem diz a uma visita pouco familiar: Meu pai só gostava desta cadeira; 
Quem manda livros aos presidiários; 
Quem se comove ao ver passar de cabeça branca aquele ou aquela, mestre ou mestra, que foi a fera do colégio; 
Quem escolhe na venda, verdura fresca para o canário; 
Quem se lembra todos os dias do amigo morto; 
Quem jamais negligencia os ritos da amizade;
Quem guarda, se lhe deram de presente, o isqueiro que não mais funciona; 
Quem, não tendo o hábito de beber, liga o telefone internacional no segundo uísque a fim de conversar com amigo ou amiga;
Quem coleciona pedras, garrafas e galhos ressequidos; 
Quem passa mais de dez minutos a fazer mágicas para as crianças; 
Quem guarda as cartas do noivado com uma fita;
Quem sabe construir uma boa fogueira; 
Quem entra em delicado transe diante dos velhos troncos, dos musgos e dos liquens; 
Quem procura decifrar no desenho da madeira o hieróglifo da existência; 
Quem não se acanha de achar o pôr-do-sol uma perfeição; 
Quem se desata em sorriso à visão de uma cascata ; 
Quem leva a sério os transatlânticos que passam; 
Quem visita sozinho os lugares onde já foi feliz ou infeliz; 
Quem de repente liberta os pássaros do viveiro; 
Quem sente pena da pessoa amada e não sabe explicar o motivo; 
Quem julga adivinhar o pensamento do cavalo...

Todos eles são presidiários da ternura e andarão por toda a parte acorrentados, atados aos pequenos amores da armadilha terrestre.

Texto extraído do livro "
O Anjo Bêbado", Editora Sabiá - Rio de Janeiro, 1969, pág. 105.