Uma árvore atravessa a casa
Grossas lágrimas corriam pelo rosto da mocinha; ela chorava enquanto caminhava, desesperada e mergulhada em uma grande desgraça pessoal. O tempo em Berlim estava ruim naquela tarde, nuvens escuras navegavam pelo céu, caía uma chuva fina e fria. Escurecia. E a mocinha em prantos tropeçou ao longo da calçada, em direção ao grande cruzamento.
O homem na parada de ônibus ouviu a princípio apenas um soluçar baixo, atrás de si. Depois virou-se e viu a moça. O homem era mais velho do que ela: teria talvez trinta e cinco anos. A mocinha tinha, quando muito, vinte e cinco. Usava um casaco claro e um chapéu de feltro cinza, que parecia um capacete. Debaixo dele via-se um pouco de cabelo castanho.
O ônibus que o homem esperava aproximou-se. A mocinha não parecia notar nada. Aliás, ela parecia não notar nada ao seu redor, pois pôs-se a andar pela pista como se estivesse sonhando, como uma sonâmbula, em direção ao ônibus.
Uma criança gritou. Freios guincharam. O homem diante do ponto do ônibus saltou para diante e puxou para trás a moça que chorava. De repente, ela estava em seus braços. Os olhos eram imensos e negros, o rosto branco como a neve.
- O que... o que foi? - ela indagou. A voz era rouca.
- Você quase se jogou debaixo do ônibus - disse o homem, soltando-a. O cobrador xingava de dentro do veículo. - Tudo bem - disse o homem. Algumas pessoas sacudiram a cabeça. Ainda furioso, o cobrador deu o sinal de partida. O ônibus se foi. O homem e a moça ficaram na calçada olhando-se.
- Esse não era o seu ônibus? - perguntou ela algum tempo depois.
Ele fez que sim.
- E por que não o tomou?
Ele deu de ombros.
- Não precisa se preocupar por minha causa - disse ela em voz baixa. - Agora vou tomar cuidado.
- Se a gente soubesse direito - disse ele. Depois olhou para os lados, curvou-se para diante e perguntou baixinho: - A coisa é tão grave assim?
Ela mordeu os lábios e acenou a cabeça, confirmando.
- Por causa de algum sujeito?
- Sim - respondeu ela. Então o homem tomou-a de novo nos braços, aquela mulher jovem que se jogara no seu peito e soluçava de cortar o coração. Ele a apertava com força, acariciando-lhe as costas.
- Ora, ora - disse. E pensou: uma moça decente. Era só o que sabia. Estava junto de uma moça decente que se sentia muito infeliz.
- Olhe - disse ele então. - Por causa da chuva, e porque estamos ficando molhados, não acha que devíamos ir para um lugar seco?
A moça ergueu a cabeça e fitou-o:
- Para... para onde quer me levar?
Ele sacudiu os ombros.
- Não sei. Talvez até o bar ali adiante. Só uns minutos. Até a chuva passar. Ou até você parar de chorar.
A moça deu um passo atrás.
- Mas eu nem o conheço.
- Conhece - disse ele, solícito. - Eu sou o homem em cujo ombro você chorou.
A moça sorriu um pouquinho e depois soluçou alto, duas vezes, como se estivesse com um ataque de soluços.
- Sou tão infeliz! - disse.
- Contra isso, só um bom gole - respondeu ele. E levou-a para o barzinho, e ela se deixou levar, sem vontade própria.
Lá dentro estava quente e penumbroso. Era um lugar muito aconchegante, de teto baixo, lambris de madeira, enfumaçado. Na primeira sala, até o teto estava recoberto de madeira. Havia velas acesas. E música suave no rádio.
O homem conduziu a moça pela primeira sala, ao longo de um corredor estreito, até uma segunda sala. Também ali havia velas acesas. Um velho garçom os ajudou a tirar os casacos molhados. Havia cheiro de charutos e presunto, e pairava um grande silêncio.
- Uma garrafa do que houver de melhor - disse o homem quando se sentaram.
- Muito bem, senhor - disse o garçom, e sumiu. A mocinha tirara o estojo de maquilagem e ajeitava o rosto.
- Que coisa idiota - observou. - Fiquei de nariz vermelho de tanto chorar. Meu nome é Lúcia Brenner.
O homem curvou-se, sentado:
- Haler. Válter Haler.
- O que estará o garçom pensando de nós? - indagou a moça.
- O que você acha que ele está pensando?
- Que somos um casal de amantes...
- E isso seria tão mau assim?
Ela sacudiu a cabeça:
- Por favor. Deixe disso. Estou mesmo muito desesperada. Nunca teria vindo com o senhor, se não estivesse tão infeliz.
- Claro - disse ele. E pensava isso mesmo.
O garçom trouxe uma garrafa de vinho e dois copos.
- Saúde - disse.
- Saúde - disse o homem, fitando Lúcia Brenner.
Os dois beberam.
- Eu queria me matar - disse Lúcia de repente.
- E quase conseguiu - respondeu o homem.
- Talvez ainda o faça.
- Não - disse ele. - Ninguém tenta duas vezes. Pelo menos, não na mesma noite. E você não vai tentar nunca mais!
- Como sabe disso?
- Eu sei.
Ela recomeçou a soluçar, mas sem lágrimas.
- Srtª Brenner - disse Válter Haler -, eu não a teria trazido para cá sem motivo. Quero lhe mostrar uma coisa. Depois de tê-la visto, não será mais tão infeliz.
- Não?
- Não.
- Mas o que é?
- Está atrás de você. Vire-se. - Ela virou-se. - O que está vendo?
- Uma árvore - respondeu ela, atônita. - Uma árvore no meio da sala!
Ele fez que sim:
- Isso mesmo, uma árvore!
- Mas como foi que apareceu aqui? - Ela levantou-se e foi até o forte tronco de um castanheiro, de casca toda lascada, que saía do assoalho e passava pelo teto. Era um tronco enorme, com no mínimo dois metros de diâmetro. A moça bateu na casca, espantada. - Mas como foi que esta árvore apareceu aqui? - perguntou.
- Vou lhe contar - disse, conduzindo-a de volta à mesa, onde os dois se sentaram. - Sabe - disse o homem -, em 1945, quando se combatia em Berlim, esta sala não existia. Isso é uma reforma que fizeram depois. Aqui, onde estamos sentados, era o pátio de uma velha casa berlinense. E atrás dele havia outra casa. Ela ainda existe. Mas não existiria mais, se não fosse o castanheiro.
- Por que não? - perguntou a mocinha.
- A casa do terceiro pátio foi incendiada pelas bombas - contou ele. - As chamas ameaçavam passar para as outras duas casas. Mas o castanheiro estava entre elas! Tinha folhas novas e muitos galhos fortes, com muita seiva. Lembra-se? Era primavera...
- Sim - tornou ela. - Lembro-me.
- E com essas folhas novas, e os galhos cheios de seiva, a árvore afastou as chamas. Não conseguiram ultrapassá-la. Estava ali como uma parede, um muro. Muitos galhos queimaram, claro, e todas as folhas morreram. A árvore inteira sofreu horrivelmente, as pessoas do bairro ainda comentam como ficou prejudicada depois do incêndio. Mas ela conseguiu o que as pessoas, que naquele tempo não dispunham de água, não teriam conseguido: livrou as duas casas da destruição.
O homem calou-se e sorriu. A mocinha também sorria; um pouco, mas sorria! - Que mais?
- Bom - disse ele. - As pessoas, naturalmente ficaram muito gratas à árvore, pode-se imaginar, não é? E quando, alguns anos depois, o taverneiro resolveu aumentar a casa, decidiram logo que a árvore não seria sacrificada. De jeito nenhum! Então decidiram construir ao redor dela.
- Mas é verdade, mesmo?
- Tão verdadeiro quanto o fato de eu estar sentado aqui. As pessoas até cavaram pequenas valetas para irrigar as raízes, para que o castanheiro tivesse sempre água suficiente. faziam tudo pra que ele se sentisse bem, pois deviam-lhe as vidas. E hoje essa árvore deve sua vida às pessoas.
Ela fez que sim. Seguiu-se um longo silêncio. Por fim, ela indagou:
- Como é que o senhor conhece a história?
- Ora - disse ele encabulado -, eu conheço.
- Mas como conhece?
Ele respondeu baixinho:
- Há dois anos eu estava tão infeliz quanto você. E muito embriagado. E queria me matar...
- Por causa de uma mulher?
- Sim, por isso mesmo. Mas na última hora um amigo me encontrou, e me trouxe para cá. E ficou comigo. E bebeu comigo a noite toda. E cuidou de mim, e me contou essa história...
- E a mulher?
- Esqueci-me dela.
De repente, Lúcia pegou-lhe a mão e apertou-a com força.
- Eu lhe agradeço. Agradeço tanto!
- Por quê? - disse ele.
- Pelo castanheiro.
- Bom - respondeu o homem. - Acho que devemos beber mais um pouco.
P.S. Esta história é verdadeira. A árvore existe, assim como a Srtª Lúcia Brenner e o Sr. Válter Haler. Escrevemos a história do castanheiro por acharmos que ela tem uma moral. Infelizmente, a árvore só existe em Berlim, e não em todas as cidades, de modo que, em caso de emergência, não pode ser mostrada para as pessoas que desejem se matar em todas as partes. Mas, afinal: não foi apenas a árvore que ajudou as pessoas. Também as pessoas ajudaram a árvore, não é?Há gente por toda parte, em todas as cidades. E em todas as cidades há pessoas que ajudam pessoas.
J. M. Simmel
Escrito em 1960