19 de fevereiro de 2010

Para pendurar sobre a cama


Karl Fischer era um dos desenhistas mais famosos de Frankfurt sobre o Meno. Seus quadros apareciam em revistas, suas ilustrações enriqueciam novas edições de Balzac e Cervantes. Fischer era um sujeito calmo e satisfeito. Amava sua profissão, tinha esposa e um filhinho, e quarenta e seis anos de idade.
A bomba de quinhentos quilos soltou-se na manhã de 21 de janeiro de 1945, de um avião de combate norte-americano que sobrevoava a cidade de Fulda, em direção ao norte. (...)
Era puro acaso que o desenhista Karl Fischer estivesse sentado na sala de espera da estação ferroviária principal de Fulda, onde a bomba caiu. Era puro acaso que estilhaços da bomba lhe tivessem arrancado as duas mãos.
Quando o retiraram das ruínas, ele ainda estava desmaiado. Quando acordou no hospital e viu o que acontecera, virou-se para a parede e pensou que teria sido um prazer perder as duas pernas. Pois não precisava delas para desenhar ou pintar. As mãos, sim.
Seus amigos sacudiram a cabeça com tristeza. Fischer estava liquidado, disseram. Liquidado aos quarenta e seis anos. Pena. É isso. Tinha sido um cara talentoso.
Isso foi há três anos.
Hoje Karl Fischer vive num pequeno apartamento na parte leste de Frankfurt. A mulher e o filho Klaus moram com ele. Fischer desenha e pinta. À sua maneira, que poucas pessoas tentaram antes. Segura os lápis, pincéis e penas nos dentes. Vi seus quadros. "Não é a vida que significa algo, mas a coragem com que vivemos", escreve Hugh Walpole. Os críticos de Fischer afirmam que seu trabalho revela uma profundidade de sentimentos que não tinha antigamente. Talvez a causa seja sua maneira singular de trabalhar. Fischer não sabe. Ele é um sujeito modesto e diz que sem sua mulher teria sucumbido. Ela o alimenta, veste, despe, lava e faz a barba. Aponta seu lápis. Fischer ama muito a sua mulher. Ela também o ama. Nas paredes de seu pequeno apartamento há ilustrações de Dom Quixote e das Viagens de Gulliver.
Sobre a mesa de trabalho de Fischer há um suporte de madeira de onde saem fileiras de pincéis e penas com as pontas dos cabos mordidas, exatamente na altura em que ele os consegue tirar com os dentes. Suas tintas estão num armário cuja porta ele pode abrir com o queixo.
Quando estava no hospital de Fulda, no começo, sentia-se muito desgraçado. O homem na cama ao lado, que perdera uma perna, segurava o cigarro que Fischer fumava. Não se conheciam, mas naquele tempo todas as pessoas miseráveis eram irmãs. O homem de uma perna só contou a Fischer que alguém dissera que Rafael pintaria mesmo se não tivesse mãos. De noite, quando não podia dormir, Fischer pensava no que isso poderia significar do ponto de vista prático. E teve a idéia de desenhar com a boca. Porque, afinal, tinha de viver de alguma coisa. Porque tinha uma mulher e um menininho chamado Klaus. E porque acreditava que, com quarenta e seis anos, ainda não estava no fim só porque não tinha mais mãos.
Algumas semanas mais tarde, foi para casa e pediu à sua mulher que colocasse lápis e pincéis sobre seus joelhos. E passou os quatro meses seguintes curvando-se. Curvou-se tanto que por fim conseguiu numa mordida pegar na boca um lápis, um pincel ou uma pena. Seus dentes desenvolveram inteligência. Sua boca descobriu que não existia apenas para comer.
A 19 de maio de 1945, a mulher dele pregou um pedaço de papel numa tábua oblíqua e a experiência começou. Fischer meteu seus lápis na boca, recostou-se com o peito contra a beira da mesa, e desenhou. Primeiro não se saiu muito bem. Dois meses depois, estava melhor. Três meses depois, Fischer desenhava a cabeça de um leão.
Nos três anos que se passaram, centenas de folhas deixaram a casa de Fischer para as redações de revistas e semanários. Milhares de pessoas viram seus desenhos, riram com eles, e pensaram que as coisas que Karl Fischer apresentava de modo tão engraçado, na verdade eram para chorar. Isso mostra que seus desenhos são bons, que tem sentido. Fischer não pode se permitir fazer desenhos sem sentido. A coisa é demasiado cansativa para isso. Uma editora de Stuttgart editará nos próximos meses uma série de livros infantis. O autor se chama Karl Fischer. Como Esopo e Walt Disney, ele conta aos intelectuais e camponeses, operários e poetas de amanhã, histórias em forma de fábulas. Fábulas com animais.
Quando hoje escreve uma carta com os dentes, sua letra é a mesma de antes. Escreve com a boca exatamente como fazia com a mão.
Há algumas semanas expôs seus quadros em Bad Nauheim. Estava com um pouco de medo da crítica. A galeria estava repleta de pessoas, como sardinha em lata. Todas acharam os trabalhos de Fischer singulares, por serem excelentes. Felicitaram-no por seu talento e coragem. E disseram que ele dera um exemplo a todos os mutilados do mundo. Fischer sorriu e foi para casa, para junto de sua mulher e de seu filho.
Moro alguns quilômetros para sudeste. Meu braço não seria bastante longo para apertar a mão de Karl Fischer, mesmo se ele ainda tivesse uma. Mas talvez ele leia este artigo e se alegre. Seria muito bom.

J. M. Simmel
Escrito em 1948