8 de janeiro de 2010

As folhas caem...


Desperdiçamos nosso tempo à medida que a vida passa.
Lemos que nada é duradouro, só a mudança permanece e só o momento presente é eterno. Nascemos sem sermos interrogados, passamos breves anos de nossa vida derramando sangue, suor e lágrimas em direção do nosso fim, e também ninguém nos pergunta sobre nossos desejos quanto a esse fim. O verão se vai, o inverno chega, mais uma vez é primavera, e o mesmo sol nos ilumina hoje e sempre. Só às vezes, e por alguns segundos, julgamos entender que somos feitos de um "material de sonho", e que "nosso pequeno ser está rodeado apenas por um profundo sono". Estamos constantemente nos transformando, não somos nunca os mesmos. O que ganhamos em experiência perdemos em coragem. No fim da vida, somos de novo crianças temendo a morte. Que nos resta, então?
Quem sabe? Talvez a lembrança.
Eu me lembro - por exemplo - da manhã de 1º de outubro. Estava junto à janela, pensando na cadeia de anos que tinham passado para mim, para você e para todos nós, nas muitas vezes em que na minha vida as folhas caíram das árvores, e nas muitas vezes em que olhei o céu lá em cima, cinzento como aço, e imóvel. Onde minha dor, minha alegria de ontem? Desfeitas, idas, esquecidas.
E era de novo outono. Não por muito tempo. Depois virá o inverno. E depois os ventos quentes e as noites claras, e por algum tempo uma lua estival deslizará sobre o céu escuro em direção do oeste. Mas naquela manhã as folhas caíam das árvores, e eu me lembrava. Quando era pequeno... as folhas também caíam assim, quietas e persistentes, ano após ano. Caíam sobre sepulturas e sobre automóveis maravilhosos, sobre o cabelo de meninas que hoje são mulheres. Lembro tudo isso muito bem: as tardes no parque, as horas do crepúsculo em que a gente volta para casa de um passeio, excitado e aquecido, escutando histórias de fadas, elfos e rainhas más que minha boa mãe contava: a história de Hans, o felizardo, que trocava por objetos sem valor uma pepita de ouro do tamanho de uma cabeça, mas cada dia ficava mais feliz; do jovem que partiu para aprender o temor de maneiras horríveis; e do homenzinho da floresta, tão feliz, ah, tão feliz porque ninguém sabia que ele se chamava Rumpelstiltskin.
Depois eu ia à escola, e, quando as folhas caíam de novo, escrevíamos uma composição na aula de alemão, com o título: "O outono chegou!" Meu Deus, como tudo isso está distante, distante! E ainda me lembro bem, e não desejo jamais esquecer. Uma vez um amigo me abandonou quando as folhas caíam. Estava muito frio e eu me sentia infeliz. E uma vez, num outro ano, uma moça me beijou quando as folhas caíam, e eu me sentia feliz, muito feliz enquanto a segurava nos meus braços. Atrás de mim, ouvia o leve passo do tempo que nos seguia e ia sempre adiante, levando-nos para dentro de um risonho verão. Lembrei-me de uma viagem pela Hungria e da pequena carruagem puxada por cavalos, que nos levava por uma ampla pradaria ao encontro da cidade e da fronteira.
Lembrei-me das ruínas no outono e de trouxas pretas imóveis que um dia tinham sido pessoas, mas agora estavam congeladas na terra, grudadas no elemento em que em breve se transformariam. Em todos os anos da minha vida caíam as folhas, sempre outras e sempre iguais. Pois, se acreditarmos, não há nada de novo debaixo do sol. Tudo o que vivemos, outros antes de nós viveram; tudo o que vemos, outros já viram, nossa alegria foi sua alegria e suas lágrimas eram salgadas como as nossas.
Pensei que um dia meus filhos estariam parados junto de alguma janela, refletindo sobre as folhas caindo, lembrando o passado, pensando em seus filhos - meus netos - como o fizeram meu pai e meu avô. Também meu pai, estou certo, ficou comovido com a constante insegurança e total ausência de permanência deste mundo. A inutilidade do desejo de permanecer nele ficou tão clara quanto para mim, que cem anos depois tenho desejo de segurança.
Todos nós, não importa onde estejamos, sentimos a mesma coisa. Mas com a experiência, acabamos adquirindo valores diversos de sentimento, e esquecemos que as folhas caem para todos nós, como o sol nasceu para todos nós, ou o vento sopra para todos nós; que alguém em algum lugar do mundo, será sempre abandonado, quando chove; que alguém, em algum lugar do mundo sempre se sentirá feliz porque está vivo; e que, se não for a vida, ao menos a morte nos fará de novo irmãos.
Fiquei parado junto à minha janela, pensando na grande comunidade de todas as pessoas à qual pertenço; ela passa e retorna, chega à Terra, fica um tempo, sempre se renova. Uma só folha não tem significação, nem sentido, nem finalidade. Mas, junto com incontáveis outras, traz o outono. Eu mesmo isolado, não faço sentido, não tenho significaçao nem finalidade. Mas, junto com incontáveis outros, tornei-me essa figura singular que chamamos humanidade. Nela minha vida tem sentido, nela me torno um ser humano. Pensei que nunca nos devíamos sentir sozinhos, pois precisamos uns dos outros; eu de você, você de mim. Para a eternidade, somos apenas folhas secas, mas também podemos encantar o mundo juntos.
Meu cachimbo apagara. Fui até a prateleira de livros para ler umas linhas que o homem chamado John Donne escreveu há muito tempo. Gosto muito delas. Enquanto as folhas continuam caindo lá fora, leio:

"Ninguém é uma ilha, totalmente sozinho. Todos são um pedaço de um continente, uma parte de terra firme. Se o mar carrega um torrão, toda a Europa empobrece, assim com se fosse tragado um braço de terra ou um castelo que pertenceu a teus amigos ou a ti mesmo. A morte de qualquer um me torna mais pobre, pois estou enredado no mundo dos homens. Portanto não peças jamais para saber quem será atingido. Tu serás sempre o atingido".



J. M. Simmel  
Escrito em 1957