22 de outubro de 2009

Felicidade em patas macias =^..^=


"A porta abriu-se num arranco. O menininho magro ofegava. O cabelo louro caía-lhe desgrenhado na testa pálida.
- Por favor, por favor, deixe-me entrar! Eu sei que os senhores chegaram primeiro, mas o meu Peter vai morrer se tiver de esperar. Por favor!
Já havia alguns pacientes no aposento: um cão são-bernardo, com um caco de vidro no focinho, um pequinês com a perna direita da frente engessada, um macaquinho com costelas partidas, um papagaio com asa quebrada. E ao lado dos bichos sentavam-se três mulheres e um homem. O macaquinho, o papagaio, o pequinês e o cão são-bernardo, bem como as quatro pessoas, olharam o menininho que estava parado diante deles, tremendo todo. Usava uma calça curta, um pulôver de gola olímpica e um casaquinho de tecido grosseiro. Os sapatos estavam enlameados. Parecia um pouco descuidado. Na mão segurava uma mochila. O são-bernardo e o pequinês começaram a rosnar. Da mochila soaram um miado fino e lamentos.
- Por favor! - disse o menino mais uma vez. Tinha, no máximo, nove anos. Nesse momento a porta branca se abriu e apareceu o veterinário da clínica de animais. Era alto, magro e tinha bondosos olhos cinzentos. O veterinário deixou passar uma mulher com uma tartaruga, e disse amavelmente:
- O seguinte, por favor!
Silêncio. O lábio inferior do menino tremia. Os quatro adultos no banco de espera acenaram com a cabeça. O homem do macaquinho disse:
- Vamos, entre!
- Muito obrigado - disse depressa o menino. E voltando-se para o médico: - Bom dia, doutor! - Ouviu-se outro 'miau' na sua mochila.
- Vamos ver - disse o médico grisalho, depois de fechar por dentro a porta do consultório.
O menino colocou na mesa a pesada mochila e abriu-a. Viu-se um gordo gato branco. Estava todo encolhido e trêmulo, e tinha uma das patas flexionadas num ângulo muito estranho. No pescoço, corria sangue de uma ferida.
O médico tirou o animal da mochila, com a segurança de uma longa experiência.
- Cuidado, ele arranha!
- A mim não - disse o médico - Nenhum gato me arranha. Como é o nome dele?
- Peter.
O médico olhou a ferida e a pata direita dianteira, e indagou:
- E você, como se chama?
- Hürgten.
- Primeiro nome?
- Emílio - respondeu o menino, pálido.
O médico pôs de novo o gato na mesa. O bicho estava quieto e não tremia, parecendo ter confiança no médico. Todos os bichos confiavam no Dr. Winter. Em seu consultório, o ambiente era o da sala de um médico de gente. Caixas de vidro com aparelhos, uma mesinha para exames, uma balança e uma escrivaninha branca.
- O seu Peter quebrou a pata. Vamos engessá-la.
Emílio fez que sim.
- A ferida do pescoço não é perigosa, mas vamos colocar um pouco de iodo.
O Dr. Winter preparou o gesso. Peter olhava.
- Engraçado, ele está até ronronando! - disse Emílio, admirado. - Devia sentir dor!
- Mas sabe que vai melhorar. Os bichos sentem essas coisas. Como foi que ele se machucou?
O menino pálido e de olhos grandes e azuis baixou a cabeça.
- Correu para debaixo de um carro. O motorista nem notou e seguiu adiante. E o meu Peter ficou ali deitado.
- Quando foi isso? - O Dr. Winter cortava a gaze.
- Faz duas horas.
- Onde foi?
- Na... na Praça da Prefeitura. - Emílio estava muito vermelho e virou a cara para a parede. O médico fitou-o atentamente.
- Escute, Emílio, como é que seu gato estava na Praça da Prefeitura? Você mora ali?
- Não. - Emílio abria e fechava as mãos sujas. Respirava depressa. O médico juntou cuidadosamente os ossos quebrados da pata, pôs as talas, enrolou tudo em algodão e começou a colocar o gesso. O gato lambia-lhe as mãos.
Durante esse tempo todo fez-se silêncio na sala branca. Lá fora, um carro buzinou uma vez.
Só quando o gesso estava colocado, e o Dr. Winter começou a raspar o pêlo em torno da ferida do pescoço, ele perguntou baixinho:
- Quantos anos você tem?
- Vou fazer nove em maio.
O Dr. Winter passou iodo na ferida. Peter tremeu um pouco, mas logo continuou a lamber a mão do médico. Este quase sussurava:
- Há pouco ouvi notícias no rádio. A polícia procura um menino da sua idade. Ele também se chama Emílio Hürgten. Fugiu ontem de tarde do orfanato em Grünwald e está sumido. Esse menino também tem um gato, disse o rádio. E levou o gato consigo.
O menino chamado Emílio Hürgten sentou-se numa poltrona, sem forças, pôs os braços na mesa, abaixou a cabecinha e começou a chorar. Chorou e chorou e chorou. Era como se nunca mais fosse parar de chorar.
- Miau - fez o gordo Peter em tom preocupado.
o Dr. Winter lavou as mãos e arrumou seus instrumentos. Ganhava tempo, antes de voltar a falar com Emílio, adivinhando que havia muito sofrimento em seu coração, sofrimento que só melhoraria com lágrimas. Por fim, sentou-se ao lado do menino e lhe deu um lenço. Peter olhava curioso enquanto Emílio assoava o nariz aos soluços.
- Por que você fugiu?
- Eles disseram que eu tinha de entregar Peter. Já o tenho há dois anos. E agora de repente querem que eu o mande embora!
- E por quê?
- Ele... ele rouba costelinhas, doutor!
- Ah...
- Mas ele precisa de comida. Nunca tem bastante. É muito grande e forte, não é mesmo? E certamente precisa de toda essa comida!
- Onde ele roubava costelinhas?
- Na despensa do orfanato, doutor. Foi essa a desgraça toda. Costumava subir pela janela, à noite, e roubar. Principalmente carne. Costelinhas inteiras! A diretora deixou algumas vezes. Mas a coisa foi ficando cada vez pior. Por fim ela disse que Peter tinha que sumir. Queriam en... en... en... - Emílio começou de novo a soluçar. A palavra 'envenenar' era demais para ele.
- Ora, ora, ora! - dise o Dr. Winter, tendo nos olhos uma expressão pensativa, singularmente triste. - Afinal, eles não o envenenaram. Ele está bem vivo! Mas então você fugiu de medo de que lhe tirassem Peter?
- Sim, doutor. O senhor vai me denunciar agora? Vai chamar a polícia?
O médico respondeu com outra pergunta:
- Onde foi que você dormiu esta noite?
- Numa cabina de telefone, em que tinham pendurado uma placa dizendo 'Não funciona'.
- E como imaginou o seu futuro?
- Eu queria ir para Frankfurt, doutor. Queria ir hoje até a estrada e tentar conseguir carona.
- E o que ia fazer em Frankfurt?
- Ora, lá há muito trabalho para crianças!
- É mesmo?
- Claro! Falei com um menino que disse que em Frankfurt a gente pode ganhar um monte de dinheiro. Os americanos tem um aeroporto ali. E diante do aeroporto há muitos lugares de estacionamento. Pois é; e se a gente lavar os carros ali, doutor, pode ganhar no mínimo oitenta marcos por mês.
- Entendi - disse o Dr. Winter. - E com isso você e Peter teriam vivido.
Emílio fez que sim, cheio de dor:
- Sim, doutor. Mas aí esse bicho bobo saltou da mochila na Praça da Prefeitura... e meteu-se debaixo do primeiro carro!
- Gatos gostam de estar em casa, sabe? Não se pode simplesmente carregá-los por aí.
- Mas o que é que eu podia fazer, se no orfanato eles queriam tirá-lo de mim?
- Entendo sua situação, Emílio - disse o médico. Levantou-se e andou de um lado para outro na salinha, com as mãos nas costas. Estava mergulhado em reflexões. De repente parou e perguntou:
- Emílio, você conheceu seus pais?
- Não. Morreram num desastre de trem. Eu tinha só seis meses de idade.
O Dr. Winter recomeçou a andar. A torneira da pia pingava. Ele a fechou. Foi até a janela e olhou para fora. Já estava bem quente nessa semana antes da Páscoa; no parque do outro lado da rua floresciam os primeiros açafrões. O sol brilhava, nuvenzinhas apressadas velejavam no céu azul. o Dr. Emmanuel Winter estava imóvel na janela e ali ficou o tempo que se leva para contar até dez; depois virou-se. E sorria.
- Preste atenção, Emílio. Agora tenho de cuidar dos outros bichos e depois darei uma saída rápida. Pegue seu Peter e entre aqui.
E levou o perplexo menino para um quartinho ao lado.
- Aqui há livros e revistas. Se você tiver fome, diga à enfermeira. Mande pedir o que quiser. Também para Peter.
- Sim, mas...
- Não vá fugir, hein, Emílio?
O menino sacudiu a cabeça.
- Palavra de honra?
- Doutor, o senhor vai para a polícia?
- Não, Emílio. Não tenha medo. Claro que não vou. Você me dá sua palavra de honra que não vai fugir de novo?
O menino fez que sim, devagar. O gato gordo examinava curioso o gesso da pata.


- Meu filho tinha nove anos quando morreu, diretora. E quando Emílio apareceu no meu consultório com seu gato, achei que era o Paul que estava diante de mim. Paul era o nome do meu filho. Fiquei perturbado com a semelhança.
Uma hora mais tarde, com o chapéu nos joelhos, o Dr. Winter estava sentado diante da diretora do orfanato em Grünwald. Lá fora, no parque, cantavam muitas vozes alegres de criança:
'Precisava de pouco para ser feliz, mas quem é feliz é como um rei!'
A diretora do orfanato era uma senhora de cabelos brancos, de óculos. E disse:
- Naturalmente não há nenhum impedimento para uma adoção, doutor. Quero dizer, em princípio. Mas há muitas formalidades a serem cumpridas, tudo tem de correr o seu curso normal...
- Falei com minha mulher. Ela... bem, ela não pode mais ter filhos. E nunca superou a morte de Paul. Nós dois ficaríamos felizes se pudéssemos levar Emílio e seu gato para nossa casa.
- Doutor, uma adoção é algo definitivo e muito grave. O senhor ainda nem conhece essa criança.
O Dr. Winter respondeu baixinho:
- Conheço Emílio. Entendo de animais. Crianças e animais são parecidos. Senhora diretora, Emílio podia morar comigo enquanto as formalidades se arranjam?
A diretora do orfanato levantou-se e pediu licença. Disse que não podia resolver sozinha. Um quarto de hora depois voltou.
O Dr. Winter levantou-se de um salto:
- E então?
A diretora fez que sim, sorrindo.
'...mas quem é feliz é como um rei', cantavam as crianças no parque.


Emílio estava morto de cansaço quando naquela noite o Dr. Winter o levou para sua pequena casa no subúrbio. Nem entendia o que lhe estava acontecendo. Sonolento, deu a mão a Nora Winter. Era uma mulher pequena e delicada, com cabelos negros e grandes olhos também negros, cheios de lágrimas.
- Como vai, meu filho? Seja bem-vindo.
- Como vai? - respondeu Emílio. Ainda segurava no braço a mochila com Peter e bocejava. Não tinha fome. Nora Winter lhe deu banho e vestiu-lhe um pijama.
- Mas que engraçado, você tem um pijama para mim! - Emílio espantava-se, sonolento.
- Pois não é mesmo engraçado? - Nora Winter pensou em quantas vezes vestira aquele pijama no seu filho. -Venha - disse ela. Pegou-o pela mão e o levou a um quarto de criança, alegre e colorido.
- Quantos brinquedos! - Emílio arregalou os olhos com esforço.
- Tudo isso agora é seu - Nora Winter sentia os olhos úmidos. Numa poltrona ao lado da caminha estava Peter, o gato, sentindo-se confortavelmente em casa. Comera fígado cru e tomara leite quente, e estava feliz da vida.
O Dr. Winter estava junto à porta. Segurava na mão um copo de conhaque e na outra o cachimbo, e olhava a esposa colocar o menino na cama. A criança disse sua oração da noite. Depois adormeceu, com uma das mãos sobre o pêlo do gato.
Nora Winter foi para junto do marido, nas pontas dos pés, e olhou em silêncio. Ele pôs os braços em torno da mulher, e juntos deixaram o quarto da criança. Ao sair, ele apagou a luz. A porta ficou encostada... como antigamente.
- Ouça - disse ele.
E ouviram o gato ronronar e também a respiração de Emílio."

J. M. Simmel
Escrito em 1949